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Anistia – onde está a razão?

© Marcelo Camargo/Agência Brasil

Gabriel Fonseca, advogado criminalista

Muito se tem falado sobre o emprego da anistia para as pessoas envolvidas no episódio que ficou conhecido como a “invasão das sedes dos Três Poderes em Brasília – 8 de janeiro”. Mas qual o valor jurídico dessa questão levantada? É juridicamente possível a aplicação da anistia?


Anistia é equiparada ao perdão judicial. A Lei da Anistia foi utilizada em 1979, no período da ditadura militar, para permitir o retorno de exilados e dando liberdade a presos políticos, mas também, perdoou todos aqueles que cometeram crimes políticos no período.

A anistia suscitada agora em 2025, busca o perdão judicial para todos que participaram ou financiaram os atos do 8 de janeiro de 2023, sendo aplicada para todos que já foram condenados e também nos processos que estão em trâmite.

Entretanto, para o seguimento do procedimento, é necessária a aprovação do projeto na Câmara dos Deputados e, após essa etapa, o STF analisará a sua constitucionalidade.

Sabendo a atual composição do STF e seus posicionamentos recentes, principalmente a forma com que se tem tratado os acusados do evento do 8 de janeiro, não é difícil prever que o projeto da anistia será barrado.

“A legislação prevê anistia a crimes hediondos, e o STF já se posicionou, no caso do deputado Daniel Silveira, que medidas como essa não podem ser adotadas quando o crime é cometido contra um dos Poderes da República”. – Prof. Pierpaolo Bottini.

Após deixar claro que mesmo que haja a possibilidade da aplicação da anistia, mas que na prática as chances são ínfimas de sua aplicabilidade, deve, a contrassenso, dizer que a forma com que os envolvidos no fatídico 8 de janeiro estão sendo tratados é demasiadamente severa.

Segundo o site do próprio STF, 898 pessoas foram responsabilizadas por “atos antidemocráticos de 8 de janeiro” – http://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/em-dois-anos-stf-responsabilizou-898-pessoas-por-atos-antidemocraticos-de-8-de-janeiro/.

As acusações feitas são: (i) Tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito; (ii) golpe de Estado; (iii) dano qualificado; (iv) associação criminosa; e (v) deterioração de patrimônio público.

A princípio percebe-se uma força tarefa fora do padrão para dar seguimento aos procedimentos relacionados ao fato, deixando de lado vários outros casos pendentes de julgamento pela Suprema Corte.

Outro ponto a ser considerado é o fato de que não se tem observado adequadamente a individualização da pena (onde é regido pela Lei que cada pessoa deve ser punida por seu ato realizado e por sua participação, dentro daquilo que tinha controle). Estamos presenciando a imputação de delitos a pessoas que apenas estavam no local e não realizaram o ato ou a omissão criminosa.

Um exemplo que pode ser suscitado é o da mulher que passou batom na estátua da justiça, com a frase “perdeu, mané”, o qual a resultou em uma pena de reclusão de 14 anos. Tal decisão é considerada, inclusive por outros Ministros do STF como uma pena exacerbada: “Eu confesso que em determinadas ocasiões me deparo com uma pena exacerbada. E foi por essa razão, ministro Alexandre, que eu pedi vista desse caso. Quero analisar o contexto em que essa senhora se encontrava” – Luiz Fux.

Por um lado, temos um pedido de anistia, que entende-se ter pequena plausibilidade jurídica e uma tentativa de impunidade para fatos que realmente podem ser considerados criminosos. Por outro, temos uma retaliação exagerada contra todas as pessoas que tiveram qualquer tipo de participação no 8 de janeiro, com o uso exagerado e indevido da lei, podendo até ser tido como abusivo.

Afinal, quando teremos políticos e julgadores que não sejam apegados a extremos e se preocupem em estarem “no meio da balança”, de maneira efetivamente imparcial?

Gabriel Fonseca é advogado criminalista e integrante do escritório Celso Cândito de Souza Advogados

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A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NAS ATUAIS RELAÇÕES DE CONSUMO

Leonardo Fonseca Araujo – Advogado

O Código de Defesa do Consumidor está em vigência há pouco mais de trinta anos no Brasil, tempo suficiente para que muitas das discussões que surgiram a partir de sua promulgação encontrassem algum tipo de pacificação doutrinária e jurisprudencial, dentre elas a questão relacionada ao critério definido pelo código para a inversão do ônus da prova.

Antes, porém, digno de nota o fato de que um diploma legal de caráter especial só foi criado no Brasil no início da década de 90, publicado pela lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, sendo que os diplomas que antes dele eram aplicados às relações de consumo, datavam de 1916 (Código Civil) e 1850 (Código Comercial), ou seja, o Código de Defesa do Consumidor levou cento e quarenta anos para trazer uma regulamentação que representasse o que a Constituição Federal consagrou como cláusula pétrea ao trazer o princípio da igualdade.

A título de exemplo da discrepância da disciplina, reproduz-se o art. 191, do Código Comercial de 1850:

Art. 191 – O contrato de compra e venda mercantil é perfeito e acabado logo que o comprador e o vendedor se acordam na coisa, no preço e nas condições; e desde esse momento nenhuma das partes pode arrepender-se sem consentimento da outra, ainda que a coisa se não ache entregue nem o preço pago. Fica entendido que nas vendas condicionais não se reputa o contrato perfeito senão depois de verificada a condição (artigo nº. 127).[i]

O dispositivo reproduzido reflete o que hoje entende-se por direito de arrependimento, previsto no art. 49, do CDC:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.[ii]

O exemplo acima é apenas um dos diversos em que se pode encontrar comparação entre o atual regramento e as normas que serviam como referência antes de 1990. Mas, é possível verificar que de acordo com o Código Comercial, tinha-se um regramento que hoje é inimaginável, beirando o absurdo, aonde não existia a possibilidade de arrependimento sem o consentimento da outra parte.

Fato é que o CDC entrou em vigor para concretizar pelo menos duas normas constitucionais tidas como pétreas, sendo uma delas o já mencionado direito à igualdade e a outra, a expressa previsão contida no inciso XXXII, do art. 5º, na qual “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”[iii]. Mais à frente, a Constituição menciona novamente a defesa do consumidor quando trata da ordem econômica e financeira[iv].

Voltando ao tema sugerido para o texto, tem-se como regra geral de processo o previsto no artigo 373, do Código de Processo Civil, no qual há a previsão de que o ônus da prova é do autor em relação ao fato constitutivo de seu direito e do réu em relação à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor[1].

No CDC há uma previsão aonde se ignora essa regra base, para se impor ao fornecedor o ônus da prova quando judicialmente se discutir uma relação de consumo. Trata-se de uma norma prevista no capítulo que versa sobre os direitos básicos do consumidor, in verbis:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[…]

VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;[v]

Desse dispositivo é possível se extrair algumas condicionantes, bem como norma de caráter subjetivo e aberto. Interpretando o dispositivo, verifica-se que de maneira correta ele equilibra a relação de consumo prevendo a facilitação da defesa do consumidor em juízo. Dá ao juiz a liberdade de alterar a regra geral de distribuição do ônus da prova, desde que haja verossimilhança na alegação do consumidor ou quando for este hipossuficiente. Prevê ainda que essa liberdade é exercida a partir do padrão da experiência daquele juiz.

Ou seja, são duas possibilidades não cumulativas e extraíveis a partir do que for apresentado pelo consumidor no processo e, diante da experiência do juiz do processo, haverá o sopesamento do caso em concreto com situações semelhantes, para então quebrar-se uma regra até então absoluta no regramento processual nacional.

A reflexão trazida aqui preocupa-se com a atual situação das relações de consumo, aonde se tem um mercado saturado de informações que estão à disposição do consumidor por meio de um simples clique. Entende este autor que a hipossuficiência do consumidor em 1990 e até meados dos danos 2000, foi inegavelmente mitigada com o aumento exponencial de informações proporcionadas tanto pelos próprios fornecedores, quanto por profissionais das áreas de concentração de qualquer assunto ligado ao consumo de bens e serviços.

Fato é que, especialmente hoje, é possível verificar-se a aplicação indiscriminada e totalmente sem critério por parte de juízes. De uma maneira que pode ser comparada a uma linha de produção industrial, é possível verificar despachos iniciais recebendo petições e desde já invertendo-se o ônus da prova, mesmo sem a avaliação da presença ou da verossimilhança ou da hipossuficiência do consumidor.

O resultado desse tipo de premissa acaba sendo um processo que muitas vezes está maculado por vícios que tem impacto direto no direito à ampla defesa, ensejando numa demanda na qual não há respeito ao devido processo legal, mormente por se estar diante de um caso em que a inversão do ônus da prova representa muitas vezes a prova de um fato negativo.

Também demonstrando a equívoca praxe jurídica de se iniciar o processo com a inversão do ônus da prova, ou seja, de forma automática, o STJ, reiteradamente reafirma o entendimento segundo o qual a aplicação do art. 6º, inciso VIII, do CDC não é automática e demanda necessariamente a análise da verossimilhança das alegações e da demonstração de hipossuficiência do consumidor[vi].

Nesse sentido, a doutrina mais abalizada faz coro a esse entendimento sedimentado pelo STJ:

Assim, para que haja a inversão do ônus da prova é necessário que o juiz analise as peculiaridades do caso concreto e, no contexto, facilite a atuação da defesa do consumidor. A inversão não é automática, devendo o juiz justificar devidamente se presentes os pressupostos da referida norma, para, aí sim, deferir a inversão da prova.[vii]

Nada obstante, de encontro ao que está sendo defendido neste texto, Roberto Senise Lisboa acolhe o entendimento de que as “regras ordinárias de experiências” previstas no CDC é um conceito jurídico indeterminado, que é extraído a partir do empirismo jurídico de quem aplica essa norma, estando diretamente relacionado com o conceito de consumidor hipossuficiente.

Considerando o conceito de consumidor hipossuficiente um standard jurídico, que não estaria limitado aos critérios fáticos e técnicos, o doutrinador contribui da seguinte maneira:

Melhor que a adoção do puro e simples critério da verificação fática ou técnica, a hipossuficiência deve ser analisada a partir dos institutos de integração das lacunas da lei. Trata-se de critério que merece elogios, porque concede a abertura devida do microssistema para que o operador do direito possa utilizar-se da analogia, dos costumes ou dos princípios gerais de direito.

Grande importância deve ainda ser lembrada, na verificação casuística da situação de hipossuficiência do consumidor porventura existente, na equidade, isto é, na aplicação da norma jurídica segundo um parâmetro de justiça que dela se pode extrair, sem que isso importe em transgressão da lei.[viii]

Dentro desses conceitos, fazendo um paralelo com uma demanda consumerista na qual o consumidor apresenta já na petição inicial, por exemplo, um estudo muito bem elaborado sobre determinado vício de produto que motivou a distribuição da ação, com vídeos demonstrando o vício daquele determinado produto em outros casos, avaliações técnicas de profissional do ramo do negócio, ou ainda estudos científicos, entende este autor que não há como considerar aquele consumidor hipossuficiente – ao menos tecnicamente –, de sorte que nada justo seria um despacho que concedesse automaticamente nesse processo a inversão do ônus da prova.

Com efeito, a reflexão ora apresentada busca exatamente isso: provocar os operadores do direito, especialmente os destinatários da prova processual, que passem a interpretar os conceitos de hipossuficiência e regras ordinárias de experiência, como estes deveriam ser interpretados, ou seja, a partir da casuística, levando-se em consideração todas as vicissitudes que o mercado de consumo está sujeito, mormente ao aumento exponencial de fontes de informações que permitam àquele consumidor saber antes mesmo da aquisição do produto, ou da contratação do serviço, boa parte dos riscos inerentes àquele produto ou atividade.

Logo, mais do que nunca, a premissa segundo a qual a inversão do ônus da prova não pode ser automática, devendo ser prestigiada e levada como regra de julgamento também sob o prisma da atualidade das relações de consumo e todo o amparo que o mercado de consumo confere atualmente aos consumidores.


[1] Conforme a doutrina de Leonardo de Medeiros Garcia, o CPC adotou a regra de distribuição estática do ônus da prova, enquanto o CDC trouxe a figura da distribuição dinâmica do ônus da prova, conferindo ao juiz o poder de redistribuir o ônus da prova a partir do caso concreto (in Direito do consumidor – Código comentado e jurisprudência. 6 ed. Niterói/RJ, Editora Impetus, 2010. p. 73).


[i] BRASIL (2022).

[ii] BRASIL (2022).

[iii] BRASIL (2022).

[iv] CF, art. 170, V.

[v] BRASIL (2022).

[vi] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 2058334/MG. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 20 jun. 2022.

[vii] GARCIA, Leonardo Medeiros. Direito do consumidor – Código comentado e jurisprudência. 6 ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010.p. 75.

[viii] LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. 3 ed. São Paulo/SP: Editora Saraiva, 2012.p. 95.

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