Vítimas laboravam em troca de alimentos e gêneros de primeira necessidade, além de viverem em moradias precárias
Um grupo de 44 trabalhadores, sendo 35 paraguaios e nove indígenas brasileiros, retirado em situação análoga à de escravo de uma propriedade rural localizada no município de Iguatemi, obteve reparação de quase R$ 107 mil, a título de quitação de verbas rescisórias e demais obrigações acessórias, calculadas pela Fiscalização do Trabalho durante todo o período de serviços prestados por essas pessoas.
A audiência administrativa que ultimou os acertos rescisórios ocorreu no dia 13 de setembro, por meio de videoconferência, quando auditores-fiscais do Trabalho apresentaram planilha contendo o somatório das verbas trabalhistas e esclareceram todas as dúvidas a respeito dos critérios utilizados na definição dos valores, como o salário mínimo vigente de R$ 1.212,00, e forma de pagamentos.
As vítimas foram contratadas para a colheita manual de mandioca e submetidas a condições semelhantes à escravidão pela constatação do chamado “truck system”, que é o endividamento dos trabalhadores em razão de obrigatória aquisição de mercadorias, em estabelecimento do empregador, mediante cobrança de preços acima da média, conforme detalharam representantes da Fiscalização do Trabalho e da Polícia Federal que atuaram de forma conjunta na diligência. Além da imediata paralisação dos serviços, os trabalhadores foram deslocados em um ônibus, até à sede da fazenda, onde os agentes públicos puderam retomar o procedimento de identificação e obtenção de declarações.
Ainda na frente de trabalho da colheita de mandioca, a equipe fiscal conversou com o pai de um dos arrendatários da fazenda e responsável pela lavoura de mandioca. Segundo ele, os trabalhadores que realizavam a atividade foram recrutados por uma empresa prestadora de serviço, mediante a formalização de um contrato de pequena empreitada.
Após o flagrante, os auditores da Superintendência Regional do Trabalho, acompanhados por policiais militares, deslocaram-se até a cidade de Iguatemi, onde deram continuidade à coleta de depoimentos dos trabalhadores que estavam sob cuidados da Secretaria Municipal de Assistência Social e daqueles que não se encontravam na propriedade rural, na data da inspeção, em razão de problemas de saúde.
Mais adiante, parte dos trabalhadores estrangeiros foi conduzida para a sede da Inspetoria da Receita Federal, situada no município de Mundo Novo, no intuito de efetivar o Cadastro de Pessoas Físicas e promover o início da regularização migratória para permanência no Brasil.
A operação que culminou no resgate dos 44 trabalhadores teve origem em denúncia registrada junto à Delegacia de Polícia Federal de Naviraí, no dia 8 de setembro, a partir de fatos narrados na Secretaria Municipal de Assistência Social de Iguatemi informando que paraguaios estavam sendo submetidos a condição análoga à escravidão na zona rural do município. À época, houve o deslocamento de equipes da Polícia Federal e da Superintendência Regional do Trabalho até a propriedade, onde se constatou uma situação compatível com o ilícito trabalhista e com o crime previsto no artigo 149 do Código Penal.
Além da quitação das verbas rescisórias, o contratante desses trabalhadores submetidos a condições degradantes de labor assinou, no dia 22 de setembro, Termo de Ajuste de Conduta perante o Ministério Público do Trabalho por meio do qual, e ao longo de dez cláusulas, comprometeu-se a cumprir diversas obrigações de fazer e não fazer previstas na legislação laboral vigente, no caso de admitir outros empregados para a execução de serviços variados, assim como a regularizar a situação do coletivo de empregados paraguaios e indígenas brasileiros encontrado nesta operação de combate ao trabalho escravo.
O grupo também prestava atividades na área de cultivo de mandioca pertencente a uma propriedade rural próxima à fazenda onde ocorreu o flagrante no início de setembro.
Prisão e fiança
Para além de configurar uma violação à legislação trabalhista, o Código Penal Brasileiro tipifica como crime, em seu artigo 149, reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. O ordenamento jurídico prevê pena de reclusão de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência cometida.
Na sequência da ação fiscal, dois homens envolvidos na prática criminosa – responsáveis pela lavoura de mandioca e pela contratação dos trabalhadores – foram detidos em flagrante delito. Eles foram encaminhados para a Delegacia de Polícia Federal de Naviraí e liberados após o pagamento de fiança, por cada um, no valor de R$ 50 mil, imposta pela Justiça Federal.
Escravidão contemporânea
Não é apenas a privação de liberdade que torna o trabalho análogo ao de escravo, mas sim, a ausência de dignidade. Esses 44 trabalhadores foram flagrados sob parte dos quatro elementos que caracterizam o contexto: condições degradantes de trabalho, incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais e que coloquem em risco a saúde e a segurança do trabalhador; jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta danos à sua integridade); trabalho forçado (manter a pessoa no serviço por meio de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (quando o trabalhador fica preso ao serviço por causa de um débito ilegal). Os elementos podem vir juntos ou isoladamente.
O número de vítimas do trabalho análogo ao de escravo em Mato Grosso do Sul em 2022 já supera o total registrado ao longo de 2021. Até o dia 20 de setembro, 116 trabalhadores foram resgatados, conforme relatório da Auditoria-fiscal do Trabalho em Mato Grosso do Sul, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência, do governo federal. Durante todo o ano passado, 81 trabalhadores foram flagrados laborando em condições degradantes.
Ainda conforme o levantamento do órgão, em 2022, das 78 ações fiscais realizadas na atividade rural, foram constatadas condições análogas às de escravo em nove estabelecimentos, localizados nos municípios de Porto Murtinho, Bela Vista, Ponta Porã, Corumbá, Naviraí e Iguatemi. No momento desses flagrantes, os trabalhadores atuavam na aplicação de herbicidas em lavouras, construção de cercas, carregamento de eucalipto, roçada de pasto, plantio de cana-de-açúcar, criação de bovinos e colheita de mandioca.
Em 2021, das 112 propriedades rurais inspecionadas, foram realizados 11 procedimentos fiscais com resgate de trabalhadores em Campo Grande, Sidrolândia, Porto Murtinho, Anastácio, Antônio João, Ponta Porã e Corumbá. As vítimas atuavam no cultivo de soja, extração de madeira, criação de bovinos, construção de cercas para confinamento de gado e em uma obra da construção civil, na zona urbana.