A pedido do MPF, povos Guarani Kaiowá de MS recebem anistia coletiva inédita por danos causados pela ditadura militar
União deve promover medidas necessárias para reparar violências cometidas contra os indígenas da aldeia Guyraroká, localizada em Caarapó (MS) e dos povos Krenak (MG)
Em decisão histórica, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, concedeu nesta terça-feira (2) a primeira reparação coletiva a indígenas. Com a anistia política, a União deve reconhecer e reparar, por meio de órgãos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério da Saúde, violações a direitos humanos causados pela ditadura militar aos povos indígenas Guyraroká (Guarani Kaiowá), de Mato Grosso do Sul, e Krenak, de Minas Gerais.
Os pedidos de anistia aos povos originários foram apresentados pelo MPF em 2015. Nos documentos, o órgão apontou que, durante a ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, as comunidades indígenas sofreram os mais diversos tipos de violações. No caso dos Guarani Kaiowá, políticas federais de povoamento do país levaram agentes estatais a promover traslados compulsórios dos indígenas, provocando mortes e desintegração dos modos de vida da comunidade. Os indígenas foram retirados das vastas áreas que ocupavam e confinados em espaços exíguos, definidos unilateralmente pelo poder público. As terras anteriormente ocupadas por eles foram liberadas à ocupação de terceiros, que tiveram a posse dos terrenos legitimada por títulos de propriedade. O afastamento violento de seus territórios impossibilitou o exercício de suas atividades econômicas, relacionadas principalmente à agricultura.
Os Krenak foram expulsos de seu território, presos e torturados, além de serem submetidos a maus-tratos e ao trabalho forçado pelo poder público. Entre as principais atrocidades estão a criação da Guarda Rural Indígena, a instalação de um presídio chamado de Reformatório Krenak, e o deslocamento forçado para a fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas.
De acordo com o MPF, essas violações colocaram em risco a existência desses povos. “A perda do território tradicional teve impactos gravíssimos sobre os indígenas, colocando em risco a própria existência desses povos, inclusive diante da importância do território, do qual foram removidos compulsoriamente, para sua reprodução física e cultural”, defendeu o órgão.
Os dois pedidos de anistia haviam sido rejeitados em 2022, pela anterior composição da Comissão de Anistia, no governo passado, mas foram analisados novamente após recursos apresentados pelo MPF. Com as novas decisões, as reivindicações indicadas pelos povos indígenas como medidas reparadoras da violência a que foram submetidos durante o regime militar foram integralmente acatadas.
Medidas de reparação – Em relação aos Krenak, parte das reivindicações aprovadas pela Comissão de Anistia foram apresentadas ao MPF em reunião realizada nessa segunda-feira (1º), na sede da Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Além de reconhecer a condição de anistiados políticos, os indígenas pediram à Comissão que recomende ao Estado brasileiro a criação de programas de assistência psicológica continuada, bem como de iniciativas voltadas à cultura, incentivando práticas tradicionais no território.
Outra reivindicação apresentada foi a criação de um grupo de trabalho para discussão e formulação de proposta de lei que inclua os povos indígenas como destinatários das reparações econômicas, sociais e culturais referentes ao período da ditadura militar no Brasil. Os indígenas também pediram à Comissão que recomende à Funai a conclusão da demarcação do território tradicional de Sete Salões, considerado sagrado para o povo Krenak, e que o órgão reveja o seu posicionamento em ação civil pública na qual pediu a suspensão do processo de demarcação e titulação do território tradicional. Em 2021, ao julgar procedente ação civil pública ajuizada pelo MPF, a Justiça Federal determinou que a Funai concluísse o processo em 6 meses, mas a Funai recorreu da sentença.
“O povo foi expulso do território, aprisionado, feito de cobaia aos macabros experimentos da ditadura. Para que não exista uma repetição do passado, deve-se estabelecer obrigações”, apontam os indígenas no documento entregue ao MPF, que também foi lido na sessão de hoje da Comissão de Anistia.
Anistia aos Guyraroká – Representante do MPF no julgamento do pedido de anistia ao povo Guarani Kaiowá, o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida destacou diversos casos de remoções forçadas vivenciadas pela etnia. “Nós, sistematicamente, violamos os direitos dessas populações. É necessário que a memória e a verdade saiam desse subterrâneo do Estado brasileiro, para que possamos promover a devida reparação aos povos indígenas”, ressaltou.
Ainda durante o julgamento, o procurador da República Edmundo Antonio Dias, responsável pelo pedido de anistia coletiva do povo indígena Krenak, apresentou também a reivindicação de que seja concluída a implantação do Memorial da Anistia Política do Brasil, em Belo Horizonte (MG). A proposta é que o espaço tenha uma seção que trate exclusivamente das atrocidades massivas cometidas contra os indígenas.
“O Memorial da Anistia Política do Brasil é um compromisso assumido pelo Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que foi valorada positivamente pela Corte na sentença proferida no Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia). A criação de uma seção destinada exclusivamente às graves violações cometidas contra os povos indígenas – que resultaram, segundo estimativa da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em pelo menos 8.350 mortes – constitui medida essencial no eixo da Memória e Verdade”, afirmou Dias.
Entre as providências aprovadas no julgamento de hoje e que serão recomendadas à União e seus órgãos em relação ao povo Guarani Kaiowá estão:
- assistência médica semanal, por equipes multidisciplinares de saúde indígena;
- efetivação de estudo epidemiológico para verificação de agravos à saúde em decorrência à exposição de resíduos agrotóxicos;
- assistência médica na área de saúde mental, especialmente para redução de traumas decorrentes dos processos de remoção forçada;
- construção de posto de saúde, com disponibilização de remédios pelo Sistema Único de Saúde (SUS);
- reconhecimento das Terras Indígenas;
- acesso à energia elétrica;
- construção de casas comunitárias, tendo em vista que a maioria vive em barracas de lona; áreas de lazer e de estudo, entre outros.